No ano de 1867 foi publicado em Lisboa o Código Civil
Português que,em 1869, através do Decreto de 18 de novembro, teve a sua
aplicação estendida ao ultramar. O art. 8º do decreto que determinou a extensão
declarava que, na aplicação do Código, deveriam ser respeitados os usos e
costumes dos baneanes, bathiás, parses, mouros, gentios e indígenas.
Bom, necessariamente, para a observação dos usos e costumes
dos povos acima nomeados, os julgadores, aqueles que deveriam aplicá-los,
teriam de conhecê-los, o que se tornou, talvez, o maior problema da
distribuição da justiça nas colônias portuguesas, pois, apesar de inúmeras
vezes ordenada a codificação dos costumes dos “indígenas”, ela não aconteceu,
não só pela diversidade das etnias existentes nas colônias, como, também, pelo
próprio descaso das autoridades no cumprimento de tais determinações, embora
algumas tentativas tenham sido feitas, a exemplo do Código Cafreal do Districto
de Inhambane (1852) anterior ao Código Civil; Código de Milandos Inhambenses
(1889) e outras tentativias, que não foram avante.
Entretanto, não foi determinada, somente, a aplicação do
Código Civil, também o Código Penal deveria ter aplicação no Ultramar, ou seja;
aos colonizados (nativos), que à época, na sua grande maioria, eram escravos,
porquanto ainda não havia sido abolida a escravidão o que só ocorreu,
definitivamente, em 1878, quando foi extinta a condição de “libertos”, pois,
apesar da lei extintiva da escravidão datar de 1869, os escravos, que a partir
dessa lei eram tidos como libertos, deveriam continuar trabalhando para os seus
ex proprietários até o ano de 1878, quando deixariam de ser considerados como
tais, e, portanto, ascendiam a condição de cidadãos portugueses com os direitos
e garantias estabelecidos na Constituição e demais leis (Código Civil
Português) e outras leis ordinárias.
Todavia, os dirigentes portugueses, apercebendo-se de que
em 1878 todos os libertos galgariam a condição de cidadão português, embora,
como outros, não pudessem votar, devido às restrições: econômicas (havia um
limite de renda para que a pessoa fosse considerada apta a exercer seu direito
de cidadania); de gênero (as mulheres não votavam); sociais (os vadios, os que
sofreram condenações, os libertos); transformaram, através da lei, esses libertos
em serviçais, aqueles que eram obrigados a contratar os seus serviços, sob pena
de serem considerados “vadios” e, nesta qualidade, serem condenados ao trabalho
compelido.
É decididamente o controle que agora tinha de ser exercido
em relação aos nativos, que já não eram mais escravos, que fez com que os
portugueses tivessem um maior contato com os mesmos e necessitassem de um maior
conhecimento dos seus usos e costumes e criassem uma legislação especial para,
a pretexto de trazê-los para a civilização, cumprindo a missão civilizacional,
obrigação de toda a potência colonizadora( Conferência de Berlim - 1885),
afastá-los dos seus “bárbaros” costumes, aqueles que atentavam contra moral,
aparecendo a condição jurídica de “indígena” que justificou a criação dessa
legislação especifica e especial.
Registro de Queixas- TPI-Lourenço Marques |
E foi assim que os portugueses tomaram para si a
distribuição da justiça (administrador-juiz), mui particularmente, no que se
refere à punição dos atos considerados como infrações penais, porque, no
direito civil, nas questões que envolvessem direitos de família, sucessão,
propriedade, os usos e costumes em que as partes fossem indígenas, deveriam ser
observados os usos e costumes indígenas, desde que não contrariassem os
princípios da humanidade e da moralidade.
Desta maneira é que afastou-se a justiça penal “indígena”,
aquela que era aplicada pela autoridade tradicional.Tal justiça era centrada na
“reparação do dano causado”, ou seja, o agente deveria indenizar a vitima, ou a
família desta, pelo prejuízo que causou, mas para chegar a este ponto, o da
indenização, havia todo um ritual, ou seja, um processo que deveria ser seguido
para que, em havendo dúvida da autoria do crime, ou para apreciar a causa dele,
e os motivos que determinaram a conduta do individuo, ela fosse afastada e o
criminoso(s) considerado, ou não, culpado.
Para se chegar ao veredicto final, ou seja, considerar, ou
não, o agente do crime como culpado ou inocente, utilizava-se diversas provas,
incluindo a testemunhal, a confissão, mas, quando o fato era negado, havia uma
prova a que o acusado era submetido. Esta prova judicial consistia em que, o
acusado, para provar a sua inocência, tinha de tomar uma beberagem feita com
folhas de uma planta, que era tóxica, (pau de feiticeiro). Caso ele tomasse tal
beberagem e nada acontecesse, seria considerado inocente; se viesse a morrer
por força da ingestão da bebida era culpado, e a sua família tinha de pagar a
indenização cabível.
Havia muitas implicações em relação a esta beberagem,
porque, ela admitia uma manipulação pelo responsável pelo fabrico da bebida,
que não tinha uma fórmula fixa. Desta maneira, dependendo da quantidade das
folhas, da água, enfim, da dosagem utilizada, o acusado poderia mesmo vir a
falecer, ou vomitar a bebida, casos em que era considerado culpado. Ou seja, a
prova podia ser manipulada, portanto, era uma prova falha, que somente a
tradição pode explicar. Esta prova não é, ao contrário do que Ayres de Ornellas
acreditava, inerente ao “direito africano”, pois considerada como o “Juízo
de Deus” a “ordália” sempre foi utilizada para determinar a culpa ou
inocência do acusado por meio de elementos da natureza, ou seja, podiam ser
utilizadas as plantas (beberagens), a água, o fogo, a fim que o acusado
provasse a sua inocência na Europa medieval; recordem-se dos duelos, do andar
sobre o fogo, dentre outras provas existentes.
É evidente que a prova do “muave”, como era conhecido o tal
juramento nas colônias portuguesas, foi proibida pelos colonizadores, mas,
apesar da proibição, ela continuou a ser praticada entre os indígenas, que,
agora, utilizavam cães ou galinhas como seus representantes na sua realização,
ou seja; a beberagem era dada à galinha, que era trazida pelo acusado, ou
acusados, se a galinha bebesse o muave e nada acontecesse, o acusado era
inocentado, se, ao contrário ela morresse, a culpa estava mais de que
comprovada. Ayres de Ornellas (1901.51-52) discorrendo sobre raças e línguas
indígenas em Moçambique em memória apresentada no Congresso Colonial
Nacional em diz:
“[...] a do muave (nome genérico para indicar a prova por
meio do emprego de substância venenosa) é que parece ser mais especialmente de
invenção africana. Muave é a forma aportuguesada de mwai, nome de uma árvore,
cuja casaca reduzida a povo é dada a beber com água. Frei João dos Santos,
Gramitto, trazem curiosas descrições d´esta prova, hoje muito em desuso pelo
alargamento da influência européia. Mesmo os macuas contentaram-se muitas vezes
em da o muave a um cão representando o seu dono. Este tem a decisão a favor se
o animal escapa; É mais simples e mais inoffensivo.[...] É também facto
que o effeito do muave depende muito da maneira como é preparado e o
preparador é também meio feiticeiro e facilmente peitado por este”. Raças
e Línguas Indígenas em Moçambique- Memória apresentada ao Congresso Colonial
Nacional, Lisboa,A Liberal, 1901 pp.51-52
Contudo, não se deixou de aplicar o “muave” aos seres
humanos, pois a fiscalização dos portugueses não era tamanha que tal proibição
fosse mesmo levada a efeito. A imensidão do território, povoações sem quaisquer
autoridades, falta efetiva de pessoal, eram as causas desta pouca, ou, em
alguns sítos, quase nenhuma fiscalização, e nesses espaços o poder tradicional
e, consequentemente, os costumes, eram observados, não sendo, entretanto,
somente nos territórios mais afastados que isto ocorria, como demonstra o
julgamento dos indígenas – réus – o chefe Vahiua e o advinho de nome Mevenha,
por este último lhe ter morto um irmão com feitiço. O indígena Mevenha, que foi
procurado por Vahiua para pagar a indenização pela morte do irmão, não cedeu
diante do pedido solicitado pelo chefe e propôs que ele tomasse o “muave” para
provar a sua inocência. O chefe não queria que ele tomasse o “muave”, pois
queria os panos como indenização, mas o Mevenha insistiu e foi pedir a um
terceiro, de nome Acubo, que também foi réu no processo, que fizesse o “muave”,
o que foi feito, sendo que o Mevenha tomou o mesmo e veio a falecer, o que para
os indígenas significava a sua culpa.
O julgamento foi feito pelo Tribunal Privativo dos
Indígenas em outubro de 1928 e o crime foi praticado em setembro do mesmo ano
“[...] Considerando os usos e costumes indígenas, o
estado atrazado de civilização em que ainda se encontram os réus, e, por
conseqüência, a sua ignorância do mal que praticavam conclue-se que não
houve por parte de nenhum dos argüidos a intenção de matar, tanto mais
que o “muave” foi encomendado e tomado voluntariamente pelo Mavenha, mas apenas
inconsideração dos réus aliada á sua ignorância, cometendo assim o crime de
homicídio involuntário previsto e punido pelo artigo trezentos e sessenta e
oito do Codigo Penal, pelo que condeno o réu Vahiua na pena de seis meses de
prisão correcional, e o réu Acubo com dezoito meses de igual pena nos termos do
parágrafo primeiro do artigo décimo segundo do Regulamento dos Tribunais
Privativos dos Indigenas, de onze de novembro de mil novecentos e vinte e sete,
que serão cumpridas em Maracotera. Maracotera, vinte e quatro de outubro de mil
novecentos e vinte e oito. O Chefe do Conselho(as) João de Faria.[...].” AHM-FDSNI-
Tribunal Privativo dos Indigenas - Cx1586, Anos 1928-129.
Mesmo após a independência de Moçambique a prova do “muave”
para confirmação de inocência continuou sendo aplicada. É uma prova a que o acusado
que se diz inocente se submete voluntariamente, está tão convicto da sua
inocência que acredita que, mesmo sabendo que a bebida pode ser mortífera, não
terá efeito algum, pois a proteção do sobrenatural vai falar por si. Observe-se
que o julgador, no caso, não faz qualquer julgamento, que é ditado pelo
resultado da prova, ele é um mero portador do resultado da prova, declara a
sentença, que, no caso de ter considerado o acusado como culpado, obrigará a
família do condenado a pagar a indenização correspondente à vitima, ou à sua
família.
Nenhum comentário:
Postar um comentário