Em 1875 através
do Decreto datado de 29 de abril
declara-se a extinção da condição servil
e, em consequência livres, um ano após a publicação desta lei, nas
províncias ultramarinas portuguesas,[1]
todos aqueles que detinham esta condição, que fora estabelecida
pela lei de 25 de Fevereiro de 1869, a qual aboliu a escravidão em
Portugal. No entanto, os individuos alcançados pela lei não adquiriam, de logo, a
condição de livres, uma vez que, esta mesma lei, declarava a obrigação dos
libertos de trabalharem para os seus patrões até o ano de 1878.
A partir desta
lei começa a delinear-se a figura do indígena fabricada pela própria
legislação, para afastar qualquer a assimilação possível com os portugueses.
Por que digo que
foi a partir desta lei que este processo de acentuação da diferença é
intensificado? Porque é a partir daí que o indígena africano deixa de ser cidadão português perante a
legislação e passa, efetivamente, a ser o diferente, o outro, aquele a quem as
leis especiais deveriam ser aplicadas e de uma maneira também especial.
Os libertos já
detinham alguns direitos, inclusive o de ser considerado português, e, portanto, as leis portugueses
lhes eram aplicadas, ainda que parcialmente, porque os libertos,
conforme constava na Constituição da Monarquia Portuguesa, não podiam votar.
Com a criação da
condição de liberto, também foi criada a condição de “tutelado”, uma vez que a
lei de 1868 considerava-os menores, e por força disto incapazes, que precisavam
da tutela pública.
Todos os que
tiveram a condição de liberdade de acordo com a lei ficavam sujeitos à tutela
pública, art. 2º. [2]
O que significava
esta tutela pública? Significava que até
o dia 29 de Abril de 1878, os que obtiveram a liberdade seriam tutelados pelo
Curador Geral e pelo Governador da província
e estavam obrigados a contratar os seus serviços por dois anos, de
preferência, com os antigos patrões, sendo que os contratos deveriam ser
apresentados a autoridade.
Estavam sujeitos
a esta tutela pública, de acordo com o art. 21º do Regulamento
para execução da lei de 28 de Abril de 1875[3] aqueles que tivessem mais de sete anos de idade, que contratariam por
si, ou por quem os representassem.
Caso os
indivíduos identificados no art. 1º da lei e 21º do regulamento de execução (livres)
que, na forma do art. 48º[4]
recusarem-se contratar-se, ou abandonarem depois o trabalho, serão considerados
vadios”[5] e estavam
“ sujeitos a trabalho obrigatório até dois annos nos estabelecimentos do
estado[…]”[6].
Também era considerado vadio, aquele que, sem motivo justificado, se ausentasse
do trabalho po 15 dias consecutivos,art. 50º.[7]
A tipificação do
crime de vadiagem e o processo de aplicação da pena a ele relativa é mais uma
forma de identificação do “Outro” e de aproveitamento deste mesmo “Outro” pelos
“Mesmos”.
O vadio, nos
termos do Código Penal Português era conceituado como sendo “aquele que não tem
domicilio certo em que habite, nem meios de subsistência, nem exercita habitualmente
alguma profissão, ou ofício, ou outro mister em que ganhe sua vida, não
provando necessidade de força maior, que o justifique de se achar n’estas
circunstâncias [...]”.
Na capital do
reino para que o indivíduo fosse considerado vadio, deveria ser julgado e condenado, condenação equivalente a
até 6 meses com prisão correcional, ficando à disposição do governo, para que
este lhe fornecesse trabalho pelo tempo que lhe parecesse conveniente.
O Código Penal
vigia em todo o território português, o que incluía o Ultramar; portanto, ainda
que, de acordo com o art. 15º do Acto Adicional de 1852, as colônias pudessem
ser regidas por leis especiais, o que se não podia era, em nome desta
especialidade, alterar penas estabelecidas na lei, como foi o caso, porque o
regulamento previa a pena de trabalho forçado pelo prazo de, até 2 anos,[8]
enquanto na Metrópole a pena máxima era de 6 meses. Observe-se a sutileza: na
capital do reino a pena era de até seis meses; nas colônias, esta pena poderia
alcançar até dois anos, ou seja, ela poderia ultrapassar o máximo estabelecido
para a metrópole a critério exclusivo do julgador.
Por outro lado, o
Regulamento cria uma nova hipótese para configurar o tipo penal, mas aplica a
penalidade prevista para uma outra situação. Observe-se a conduta proibida,
fato gerador da aplicação da pena no caso das colônias, e no caso da metrópole;
Para as colônias o fato de não demonstrar que estão contratados ou recusar-se à
contratação, ou ainda, faltar ao trabalho por 15 dias, são os tipos penais que caracterizam
a vadiagem. Na Metrópole, o indivíduo não tinha trabalho, era um sujeito
errante, morava na rua. Os vadios, como conceituado no código são “seres
ociosos, errantes, sem família, sem cidadania, seres que simplesmente não
cumpriam as regras estabelecidas e ocupavam um espaço especifico: a rua.” [9]
Situações diversas que não podiam ser inseridas em um só tipo penal. O tipo
penal, vadiagem, portanto, não poderia ser aplicado ao indígena, quanto pior, a
pena agravada como estabelecida.
No art. 89º o regulamento
refere-se aos reincidentes, acreditando-se que seja o caso dos
indivíduos que já tivessem sido condenados e cumprido a pena pelo crime de
vadiagem, ou seja; tenham trabalhado por dois anos, e não comprovem que, depois
deste período, tenham sido contratados, nesses casos ele estariam “ sujeitos ao trabalho
obrigatório pelo máximo de tempo determinado no art. 27º e nos termos ahi
estabelecidos, conforme a disposição do art. 86º do Código Penal[…]”[10]
A pena estabelecida no art 27º seria de
2 anos, não existindo qualquer graduação, era a pena máxima que deveria ser
aplicada.
Em um curto
período, 1868 a 1878, o indigena portugues foi identificado de diversas
maneiras através da lei: escravos, libertos, tutelados, incapazes, vadios. A
partir do Regulamento de 1878 passaram a
serviçais e sujeitos ao trabalho forçado.
Enquanto
Portugal tentava legislar a respeito do trabalho indígena, procurando uma
maneira legal de obrigar o africano português a trabalhar, a cobiça pela África
seguia o seu rumo e os colonizadores tinham planos para o continente africano. O
comércio pelos rios precisava ter controle e havia necessidade de autorização
para navegação em muitos rios interiores, e para regularizar este comércio, bem
como resolver alguns problemas de fronteiras, realizou-se a Convenção de
Berlim.
Parece-nos, evidente, que a Conferência de Berlim, fez nascer um direito colonial
internacional, surgindo, exatamente desta Conferência, uma medida de caráter
internacional para a proibição do tráfico de escravos; todavia a sua origem, a
sua forca motriz, estava no estabelecimento de regras para o comércio na
África. O interesse econômico era o mote, a base da reunião. A delimitação de
fronteiras era essencial para as pretensões das potências colonizadoras. A
liberdade de comércio era fundamental para os interesses econômicos das grandes
nações colonizadoras.
A
introdução do Ato Geral define os objetivos da Conferência, e o corpo do
documento as deliberações tomadas, que em verdade funcionaram como princípios,
normas programáticas, porque, a partir delas é que os Estados adaptariam a sua
legislação para aplicação nos territórios coloniais.
Para
cumprir o que fora determinado nessa Convenção, a respeito da ocupação efetiva
e fixação das fronteiras, Antônio Ennes seguiu para Moçambique para delimitar
as suas fronteiras e estudar a viabilidade da colônia, oportunidade em que
percebeu as particularidades do direito consuetudinário dos indígenas; e foi
por perceber todas as originalidades deste direito que ele idealizou a grande
mudança na vida dos “indígenas portugueses”.
Assim e
que partir daí (1893) os indígenas adquirem, legalmente, o status de INDÍGENA,
que significava a exclusão legal de direitos atribuídos aos cidadãos
portugueses. Com base nesta qualificação e no princípio da missão
civilizacional é que os indígenas passaram a escravos disfarçados. A obrigação
moral e legal de trabalhar como forma de melhorar a condição material e moral,
e que, se não cumprida, voluntariamente, seria imposta pelo Estado, perenizou o
verbo que caracterizou doravante a relação do indígena para com este, que, com
apoio da lei, obrigava-o a
trabalhar, não só para si, Estado, como também para particulares, tudo, porém,
com o objetivo de cumprir a missão civilizacional a si atribuída, como bem
expôs o Sr. Antonio Eduardo Villaça, Ministro da Marinha e Ultramar quando
apresentou a proposta à Câmara dos Deputados:
Os principios fundamentais d’essas
providências [...] Não são violentos, não offendem direitos naturais, não
transgridem os preceitos na nossa legislação liberal e humanitária, de que
tanto nos ufanamos [...] Obrigar populações numerosas a trabalharem, obriga a
facultar-lhes trabalho, o que pode ser ainda mais difficil commettimento; mas o
systema de compulsão que se propõe atenua em grande parte essa difficuldade,
permittindo que essa compulsão se gradue pela procura que houver de
trabalhadores, tanto para os serviços públicos e municipaes, como para serviços
particulares.[11]
Desta maneira estava criada a identidade
indígena fabricada artificialmente pela legislação portuguesa, que, também
estabeleceu um judiciário especial para julgar os que tinham tal qualificação
jurídica. Assim, todas as relações processuais envolvendo indígenas eram analisadas
pelas autoridades judiciárias portuguesas, que deveriam aplicar o direito consuetudinário.
O status de -INDIGENA –, pois, permitiu que muitas leis fossem criadas para
ratificar a exclusão, leis que tinham aplicação exclusiva aos detentores deste
“status”; melhor dizendo, leis criadas especialmente para regular a conduta dos
que foram transformados, pela lei, em “não portugueses”, aos quais foi dedicada
uma JUSTIÇA ESPECIAL, desde o momento em que, no ano de 1894, criou-se o
Regimento da Administração da Justiça no Ultramar e que se estabeleceu o
conceito de indígena.
Após este regulamento, e já em 1894, passaram
a ser “indígenas” com a conotação perjorativa que o termo tomou, pois, ao se
falar em indigena falava-se do “selvagem” do “incapaz” “ do “indolente”,do que
precisava ser civilizado e adquirir uma melhor condição moral e material, o que
seria feito através do trabalho, a que estaria obrigado todo o homem válido.
“Indigenas” conceituados pelo Decreto de 20 de
setembro de 1894 eram “os nascidos no ultramar, de pae e mãe indígenas, e que
não se distingam pela sua instrucção e costumes do comum de sua raça”[12],
podiam ser julgados por autoridades não pertencdentes ao judiciário, podiam ser
condenados à pena de trabalhos públicos e à de trabalho correcional, além de
terem a obrigação de trabalhar, sob pena de a isto serem forçados. Tudo isto,
apenas e tão somente, porque eram considerados “O outro”; “O Indigena”, o que
jamais alcançaria a cidadania portuguesa, aquele que, regido por leis especiais,
engrossaram a legião dos excluídos, condição deliberadamente criada e querida
pelos portugueses, que jamais quiseram ser iguais aos que, segundo Oliveira
Martins “[...] não raro próximo do antropóide e bem pouco digno do nome de
homem”.[13]
[1] D.G 293 de 24.12.1875 – Regulamento para execução da lei de 29 de
Abril de 1875
[2] D.G. nº 104 de 11.05.1875,
p.125
[3] D.G. nº 293 de 24.12.1875, pp. 329-336
[4] Idem.
[5] D.G. nº 104 de 11.05.1875, art. 27º
[6] Ibid, § 1º do art. 27
[7] D.G. nº 293 de 24.12.1875, p. 332
[8] Art. 88º da Lei de 20.12.1875
[9] DURÃO, S.;GONÇALVES,C.G.; CORDEIRO, G.I., 2005, p.124..
[10] Art. 89º da Lei de 20.12.1875
[11]
DCSD nº. 31 de 20.03.1899, p.58
[12] D.G. nº220 de 20.02.1894
[13] OLIVEIRA MARTINS,J.P.1953,p 255.
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