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Partindo,
portanto, do entendimento de Hegel e Kant, que não distinguiam o “homem
silvestre” dos grandes macacos, o que gerava a sua incapacidade de sociabilização
e de construção de uma história, faremos este breve resumo da historiografia africana,
para clarificar atitudes e medidas que foram, ao longo do tempo, sendo tomadas
em relação aos homens que não tinham história, os “selvagens” indígenas.[1]
Tentaremos
mostrar como a África e os africanos eram vistos pelo olhar do “OUTRO”, que
construiu uma imagem deles, sem que eles, os mais interessados, participassem de tal construção, e que serviu
para justificar as medidas legais tomadas e aplicadas nas colônias.
É
um mundo criado pelo exterior, um mundo que, ao contrário do que Vico[2]
observou em relação aos homens fazerem a sua própria história, deixou de fora
os protagonistas da história criada por tantos quantos tinham interesse na
África e precisavam usar os seus nativos para alcançar os seus desideratos,
portanto não queriam tirá-los desta condição de “não ser”, que lhes foi
imposta.
Um
mundo em que o homem branco era o sinônimo da educação, da civilização, do
correto, do limpo, do legitimado culturalmente para se sobrepor àqueles que,
não brancos, eram considerados inferiores; um mundo legitimado pelas teses
darwinianas sobre a seleção natural. O mundo dos valores liberais e
humanitários, mas que, contrariamente a estes valores, a cada dia aumentava a
distância do “branco” do “de cor”.
A
África tida como um continente “povoado por populações que não possuíam a menor
noção do poder político e ainda menos do Estado,” [3] o
que foi devidamente desmistificado por Evans Pritchard e Meyer Fortes, que
demonstram a existência de sistemas políticos africanos. E, ainda que estes
autores não tivessem desmistificado tal crença, a própria história se
encarregaria de fazê-lo, porque a procura das chefias para estabelecimento de
acordos, de termos de vassalagens, etc., é uma demonstração nítida de que havia
uma organização política onde existia uma hierarquia, com um poder central que
comandava e tomava as decisões.
Todavia,
esta mesma África que era povoada por homens de cor que não possuíam alma,
portanto, não poderiam ser considerados como gente, precisava ser conhecida, e
em todo o mundo instituições surgiram com a finalidade de estudá-la. Em
Portugal a Sociedade de Geografia de Lisboa (1875) liderava as iniciativas, e,
durante muito tempo, influenciou em muitas das decisões políticas sobre a
maneira de governar as colônias e na divulgação da imagem dos africanos como
selvagens, preguiçosos, que somente através do trabalho poderiam chegar à
civilização.
Santos Rufino, Vol.10, p. 16 |
Entretanto,
estes homens brutos, selvagens, sem história, poderiam servir para realizar
trabalhos pesados e sem ônus para os utilizadores e, durante muito tempo, estes
subprodutos da humanidade foram explorados, espoliados de suas terras,
afastados de seus familiares, servindo de burros de cargas e justificando a sua
própria existência como seres inferiores.
A
Conferência de Berlim obriga que a argumentação histórica e a ideologia dos
colonizadores seja modificada, agora estamos diante de um princípio
internacional que é o da missão civilizadora, há que se trazer os indígenas à
civilização, portanto, eles não podem mais ser tratados como incapazes de viver
socialmente e de aprender, embora a literatura colonial portuguesa, mesmo após
a convenção de Berlim, continue centrada na “selvageria” dos indígenas, na sua
falta de aptidão, o que se reflete na própria política colonial, que procura
minimizar a crítica internacional com medidas que em nada modificaram o status
dos indígenas, que assim foram considerados em 1894 para efeitos de prestação
de serviços, situação que perdurou até o momento em que os indígenas ganharam
um estatuto próprio, que garantia a exclusão legal de todos os direitos
concedidos aos cidadãos portugueses, e direito a uma justiça mais de que
especializada, a justiça “indígena” protagonizada pelos tribunais privativos
dos indígenas, criados pelo “OUTRO”; aquele que recebeu e constitucionalizou a
missão de civilizar, de trazer os selvagens ao mundo da civilização[4].
Mas
os selvagens têm reações, e estas reações fazem aparecer questionamentos sobre
as estruturas de resistência (“quilombos e mocambos”) e a historiografia passa
a se preocupar com este novo objeto,[5] o
negro como escravo e a conseqüência da escravidão para a própria sociedade
africana. No estágio atual a preocupação volta-se para a África e africanos,
mas a história passa a ter a participação ativa deles; estuda-se a identidade,
a etnicidade, os costumes. O pluralismo jurídico vem sendo objeto de vários
estudos acadêmicos, mesmo que a história colonial oficial portuguesa, no caso
da África lusófona, ainda se mantenha; seja como ponto de partida, seja como
justificadora de mudanças estruturais nas sociedades colonizadas, no entanto, a
releitura de documentos, os trabalhos de campo com diversas etnias, o estudo
dos usos e costumes é feito abstraindo-se dela os mitos, as continuidades,
procurando salientar a participação daqueles que, outrora, foram os excluídos
da história; esta dinâmica na historiografia africana pode ser sentida a partir
da década de 60 e continua passando por transformações.
Para a historiografia
(portuguesa) dita colonial, a história da África somente começa com o
desembarque dos europeus naquele continente, o que significa que esta
historiografia é limitada territorialmente, por um grande período, ao litoral,
e se resume aos relatórios apresentados por estes marinheiros. Somente no
século XIX é que a ocupação passa efetivamente a ser feita com mais intensidade
e começa uma nova fase na historiografia africana através dos relatos de
campanhas militares de ocupação, cheios de ufanismo e heroísmos e apresentando
o africano, ainda como selvagem, incapaz, e por isso mesmo, um indivíduo que
precisa de tutela.
Na década de setenta os próprios
africanos e afro-descendentes é que são os grandes historiadores da África.
Novas técnicas e novos métodos de investigação são utilizados, a história oral
ganha força, a arqueologia com as suas descobertas auxiliam tais historiadores
a reconstruir a história e nomes como Ki-Zerbo, A. Ajauy,
B. Ogot, T. Obenga, Tamsir Niane[6], Cheick Anta Diop mesmo com
uma tendência afro-centrista,[7] sedimentaram a historiografia africana. A história africana é, pois, através
deles, revisada. Agora é o africano que diz a sua história. A diversidade africana é explorada em
estudos antropológicos, étnicos, sociológicos, há uma preocupação com a
identidade, com a cultura. Aparecem os romances históricos, nele são trazidos
os mitos, as lendas, os fatos históricos e as suas explicações, como é o caso
de Ualalapi em que Khosa, através da
linguagem literária, conta a estória do Gungunhana, que, em um só momento,
desfaz um mito tanto português quanto moçambicano. Dona Theodora e os seus Mozungos de Maria Sorensen, que reconstitui
o universo dos prazos da Zambézia. Outros autores, como Mia Couto, também
trazem a história através dos seus romances. As atuais perspectivas do estudo histórico do continente
pretendem tornar
conhecido o passado
da África tal como é
visto pelos africanos.
Santos Rufino, Vol.10, p. 23 |
No final século XX a historiografia
africana ganha a África Negra História e
Civilizações de Elikia M`Bokolo,[9] traduzido em 2003 para o
português.
A história da escravidão ganha outros contornos,
muitas publicações e novas perspectivas em relação a esta, que agora passa da
escravidão propriamente dita, aquela da venda de pessoas e do tráfico de escravos,
para o trabalho forçado, seja dos serviçais, seja em história mais recente, de
mulheres e crianças. Em relação ao direito africano, particularmente em
Moçambique, inúmeros são os estudos das instituições e do pluralismo jurídico.
Uma grande atenção é dada ao papel das autoridades tradicionais, como
intermediadores entre o Estado e a coletividade. A África abre-se em leque para
ser objeto dos diversos saberes. A ilustre desconhecida entra, de uma vez, no
mundo do conhecimento pela porta da frente, onde deveria ter sido sempre
recepcionada.
[1] “Os negros da África não possuem, por
natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume
desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado
talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus
países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se
encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na
ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente
arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo
prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre
essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades
mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre
eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo
quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de
uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada
por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros.
Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores,
que se deve dispersá-los a pauladas.” (KANT, 1993: 75-76) Hegel, por sua vez,
diz: “a principal
característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de
qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se
encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma idéia geral de sua
essência [...] O negro representa, como já foi dito o homem natural, selvagem e
indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo
o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a
idéia do caráter humano [...] A carência de valor dos homens chega a ser
inacreditável. A tirania não é considerada uma injustiça, e comer carne humana
é considerado algo comum e permitido [...] Entre os negros, os sentimentos
morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato inexistentes”. (HEGEL,
1999: 83-86).
[3] HENRIQUES.
I.C. (2004:16) . O professor Doutor Gilles Cistac em História do Direito Processual Administrativo Contencioso em Moçambique cita Junot para
esclarecer que existia uma organização em que os poderes estavam concentrados
na pessoa do chefe: “ [...] mas o que permanece como factor comum e transversal
dessas organizações é a fusão dos poderes
e das funções jurisdicionais e executivas ou administrtivas; como escreve Henri
Junot: “Não ha separação de poderes na corte tsonga. O chefe, ajudado pelos
conselheiros, conserva em suas mãos o poder legislativo, o poder executivo e o
poder judicial. É a autoridade suprema e das suas decisões não há apelo”. p. 8 .
[4] Isabel
Castro Henriques,(2000:219) afirma que “Não parece ser possível proceder a uma
simplificação da «ideia colonial»,na medida em que está ancorada na história
nacional portuguesa, embora não possa deixar de conhecer mudanças impostas pela
evolução do quadro nacional, seja pelas relações internacionais. O regime
instaurado em 1926 não deve divergir profundamente da ideologia colonial
praticada tanto pela Monarquia parlamentar como pela República.
Convém
naturalmente dar conta dos diferentes níveis ideológicos que são solicitados e
determinam os comportamentos da administração colonial, tal como estão
presentes nas escolhas dos colonos. De facto,
no primeiro nível funciona, a partir da segunda metade do século XIX, a legitmidade
histórica portuguesa. A famosa ideologia dos «cinco séculos de colonização» e
por consequência de direitos transita para o quadro ideológico do colonialismo
revisto pela ditadura. Esta tese é reforçada pelo princípio da existência de
uma continuidade transcontinental entre diferentes territórios portugueses: do
Minho ao Timor, tal é a fórmula mágica deste colonialismo que a cartografia
elaborada na época permite por em evidência, acompanhada pelo famoso slogan,
«Portugal não é um país pequeno» [...]”.
[5]
Elikia M´Bokolo(2003: 342) informa
que o “tema privilegiado dos estudos consagrados aos africanos no Novo Mundo, a
resistência dos negros ao sistema esclavagista liga-se a outra abordagem da
história, uma história a partir de baixo, ao nível das violências sofridas e
das lutas levadas a cabo pelos dominados”.
[6] Estes
autores, sob a direção do primeiro, escrevem, sob os auspicious da Unesco, a História
da África em oito volumes.
[8]
Apphia A casa de Meu Pai,(1992) The Ethics of Identity (2005) Amy
Guttman e Apphia Colour Conscious(1996),
Frederick Cooper, Thomas Holt e Rebecca J. Scott – Além da Escravidão (1947) Frederick Cooper- Decolonization and African Society
(1947); Peter Fry- A
persistência da Raça(2005), Frantz Fanon, Pele Negra Máscaras Brancas(1975). Edward W Said Orientalismo (2004); Charles Taylor, Multiculturalismo. (1994)
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