Durante os meses de julho a setembro
daquele ano, Sua Alteza, o Príncipe Real, Dom Luis Felipe, foi visitar a
África. Aliás, até então, o primeiro monarca a fazer uma visita ao Ultramar
Português, embora a visita não tivesse se limitado às colônias portuguesas.
O que fazer para agradar ao Príncipe?
Tudo. E o que seria tudo? Mostrar minimamente a realidade, ainda que
devidamente camuflada, porquanto, ele deveria sair dali impressionado, com
tudo, inclusive com o tratamento que era dado aos “indígenas”. Para organizar e
observar os mínimos detalhes, como sempre, organizou-se uma Comissão, que foi
denominada de “Comissão de Festejos”, que ficou responsável por tudo o que
fosse ligado à visita real.
Visita Príncipe em 1907 |
As obras que podiam ser visitadas pelo Príncipe,
não precisavam de preparo, estavam às vistas e seriam
, como foram, visitadas
por sua Alteza Real, afinal o Príncipe tinha de ver o que os administradores
estavam fazendo, e nada melhor, que visitar os canteiros das obras em
andamento.
Príncipe visitando Lourenço Marques |
Entretanto, para que os naturais da terra
fossem apresentados ao Príncipe, era necessária, sem dúvida, uma preparação.
Por que a preparação? Porque tudo preciíava ter um aspecto bem natural. E o que
seria tão natural aos indígenas que poderia impressionar o Príncipe, a Sua
Alteza Real? Um batuque, claro! Num batuque o Príncipe poderia ter a dimensão da
selvageria, do diverso modo de vida dos nativos, e, mais importante ainda, do
controle que os administradores detinham sobre os indígenas
Assim, a comissão dos festejos organizou o
batuque. Foram solicitados indígenas das diversas circunscrições para dele
participarem. Os indígenas sairiam de suas circunscrições, ou melhor dos seus
confinamentos, para irem até Lourenço Marques. Para tanto os secretários das
diversas circunscrições vieram antes para a capital, escolheram os locais dos
acampamentos, providenciaram mantimentos, madeira, etc., enfim tudo o que
necessário para o “bem estar”dos indígenas, que deveriam ficar em Lourenço
Marques do meio dia de 27 de julho até o dia 31 do mesmo mês, portanto, 4 dias
não completos.
Os administradores das respectivas
circunscrições tinham de ficar responsáveis e atentos em relação aos seus indígenas,
a responsabilidade por qualquer transtorno que viesse a acontecer seria a si
atribuídas. Um erro, um acontecimento indesejado, um mau comportamento dos indígenas
resultava, com certeza, em pontos perdidos em uma promoção.
Bom, o fato é que os indígenas da 2ª
Circunscrição de Lourenço Marques ( Manhiça) ficaram acampados nas antigas
obras do porto. Estavam vigiados, diuturnamente, pelo administrador e
empregados da referida circunscrição, de acordo com informações do próprio
administrador: “permanecendo eu e os empregados da Circumscripção junto aos
pretos”.
Os indígenas da Circunscrição de Magude
ficaram acampados em um terreno do Alto Mohé, também de 27 de julho até o dia
31 do mesmo mês.
Batuque feito, Príncipe homenageado, hora
de ir embora: Príncie para continuar a sua visita real às terras ultramarinas,
e os indígenas para retornarem ao confinamento nas suas circunscrições.
Eis que, no dia 5 de agosto, a firma
comercial Correa & Martins, solicita à Comissão de Festejos uma indenização
correspondente ao valor de 14 bois, que, segundo os seus proprietários, foram
roubados pelos pretos de Manhiça, durante a visita do Príncipe. Explicaram que
receberam 384 bois vivos, que foram desembarcados pelo navio Prudence e que
ditos pretos “mataram e levaram em bocados, 14 d´esses bois”, alegam que “os
suppes" ou seus serviçaes não tinham força para oppor a uma avalancha de pretos
que de azagaia em punho, atacavam os animais”.
Detalhe estação ferroviári Maputo |
Uma outro requerimento chega à Secretaria
do Negócios e Serviços Indígenas, este, por sua vez, do Sr. João Gomes Jardim,
pedindo indenização pelos prejuízos causados por um grupo de indígenas de
Magude, que acamparam no seu terreno sito no Alto Mohé, porque este lhe
quebraram 4 estacas que prendiam 4 ordens de arame lisos, e subtraíram estes,
correspondente a três rodas grandes. Explica que os arames serviam de vedação
para o seu terreno que confronta com os terrenos de Freire de Andrade e de
Clemente Nunes.
Tal requerimento também é enviado ao
Secretario de Negócios e Serviços Indígenas, que dá o mesmo despacho,
aconselhando que o requerente ajuíze a ação correspondente no tribunal
competente, isto em 04 de setembro, após receber a informação do Administrador,
que assegura que não recebeu qualquer queixa do proprietário do terreno onde os
indígenas estiveram acampados, e que presenciou o embarque dos indígenas na
estação dos caminhos de ferro, não vendo qualquer deles carregando arame na
bagagem.
Todavia, houve um pedido que foi atendido.
Uma indenização que foi totalmente paga, por sinal, dentre as apresentadas, a
de mais difícil, aceitação:
O Requerimento é de um senhor de nome
Luciano Ignacio Feliz, negociante e proprietário em Lourenço Marques e ele
reclama um prejuízo que sofreu, diz ele:
“[...]
Que é negociante tambem em lenha e é fornecedor, por contracto d´alguns estabelecimentos
publicos, e para poder cumprir os fornecimentos que ainda lhe são feitos é
obrigado a ter na praia, como tem, defronte de sua casa, grande quantidade de
lenha.
Succedeu
porém que, agora, com a vinda à Cidade dos pretos para a recepção de Sua
Alteza, o Princípe Real, os da circumnscripção da Manhiça estavam acampados
junctamente nas Obras do Porto, e por qualquer circunstancia, o Almoxarifado
não lhes forneceu a horas precisas que elles entendiam, a lenha para cosinhar e
para se aquecerem durante a noite, assaltaram ao montão da lenha que o
reclamante tinha na praia, roubando para cima de 30 tonelladas, sem que o
reclamante e os proprios empregados que os superentendia, podessem obstal-o ou
evitar.
Reclama
pois contra esse desbaste, pedindo o pagamento de 30 tonelladas de lenha á
razão de 5.000 réis, preço porque, por contracto, a fornece aos
estabelecimentos do comercio
O
Reclamante, para provar o que diz, dá como testemunha o proprio Administrador
da Circumnscripção, o Sr. Tenente Corvo, que teve conhecimento do caso, sem,
como disse, poder obtalos, podendo ainda ter muitas outras testemunhas, se for
necessario.
Digne-se
pois V.Exª ordenar à repartição da fazenda para que lhe liquide pague a quantia
de 150$000 réis, equivalente a 30 tonelladas de lenha, por ser de Justiça.
Pede
Deferimento.”
O administrador foi solicitado a dar
informações e diz que não teve conhecimento do fato e que, durante todo o tempo
em que os indígenas estiveram no acampamento ele ali esteve com outro
funcionários, que providenciavam tudo o quanto os indígenas solicitassem,
inclusive madeira, e que quando deixaram o acampamento, as madeiras que estavam
na praia lá ficaram, acrescentando que acha demasiado exagerado, caso o fato
tenha se dado, a quantidade 30 toneladas, até porque, segundo ele, a falta de
tamanha quantidade dava logo nas vistas e seria de imediato reclamada, o que
não aconteceu, inclusive porque o proprietário da madeira mora em frente a
praia onde estava armazenada a madeira.
Foi feita uma investigação presidida pelo
administrador do Conselho de Lourenço Marques –Sr. Antonio Luiz dos Remédios de
Fonseca.
A primeira testemunha era uma mulher de
nome Marianna Paredes, uma viúva, doméstica, portuguesa, que residia na estrada
marginal das obras do Porto. Diz a senhora que foi ver o batuque em honra a sua
Alteza e que “[...] quando voltava viu passar o Sr. Luciano Ignacio num ricshow
a berrar pelos pretos, que tendo chegado primeiro do batuque, passaram pelo
local onde o mesmo tinha empilhada a llenha, agarraram e levaram tanto quanto
podiam, embora ela nao soubesse precisar a quantidade”. Disse também que sabia
que o sr. Luciano tinha uns pretos tomando conta da madeira, mas que com medo,
deixaram que o furto fosse praticado.
A segunda testemunha , também português e
do Lamego, casado e morador da estrada marginal das Obras do Porto disse que:
“Achando-se na varanda da sua residencia,
viram passar os pretos que se recolhiam do batuque em honra a Sua Alteza o
Principe Real, levando, uma grande parte d´elles alguma lenha cuja quantidade
não pode calcular, e só mais tarde é que soube, por ouvir dizer, que a referida
lenha tinha sido furtada pelos mesmos indigenas das pilhas que Luciano Ignacio
Felix tinha na praia em frene da sua casa, acrescentando que os referidos
indigenas nenhuma necessidade tinham d´isso porque vira as carroças do
almoxarifado acarretando lenha para o local do alojamento dos mesmos.[...]”.
O terceiro testigo é uma mulher, também
portuguesa de Lisboa e moradora na estrada marginal das Obras do Porto. Tal
testemunha diz que nada viu do acontecido e só sabe por ouvir dizer, que
os indigenas de Manhiça haviam furtado a lenha.
A quarta testemunha, também português e,
no momento, desempregado, diz:
“[...] que na tarde do batuque vira os
pretos que vinham do mesmo, passarem na maior parte pela estrada e alguns
d`elles passaram pelo lado da praia e junto das pilhas de lenha que Luciano
Ignacio Felix tem no mesmo local e das quaes, alguns indigenas, tiraram alguns
paus, dirigindo-se para o seu acampamento e que, logo a traz dos mesmos
indigenas, vinha o queixoso, que, começando a berrar, fizera com que alguns dos
indigenas voltassem atras a largar a lenha na pilha e outros a largal-a pelo
caminho, e ainda outros largaram a correr para o acampamento com a lenha que
levava, o que a seu ver fizeram sem necessidade, pois que tinham lá muita lenha
e tanto assim que lá a deixaram quando se foram embora. Finalmente quanto á
quantidade de lenha que o queixoso diz terem-lhe furtado, parece-lhe ser
exagerada, conquanto não possa calcular bem a porção dela [...].”
Não há na cx. 1630 a decisão, ou melhor a
fundamentação dela, mas o Secretario dos Negocios Indigenas manda que o
Almoxarifado da Fazenda entregue “[...] ao Sr. Luciano Feliz 30 toneladas de
madeira, visto lhe terem os pretos que aqui vieram ao batuque em honra a Sua
Alteza o Principe Real, tirado egual quantia de lenha que elle tinha nas obras
do porto”.
A decisão do Sr. Secretario de Negócios
Indígenas foi, no mínimo, equivocada: Se analisarmos os depoimentos das
testemunhas, temos a fragilidade da prova em relação ao furto de 30 toneladas
de madeira.
Das quatro testemunhas, todas elas
portuguesas, ou seja, brancos tal qual o proprietário da madeira, só uma delas
viu alguns indígenas com madeira, ainda assim, segunda esta testemunha, de nome
José de Sá Pessoa, os indígenas que pegaram a madeira, na sua grande maioria,
quando ouviram os berros do Sr. Feliz, largaram-na, muito poucos é que correram
para o acampamento, acrescentando que a quantidade solicitada pelo queixoso era
exagerada.
Uma outra testemunha disse ter visto da
sua varanda alguns indígenas carregando madeira, mas não pode calcular a
quantidade e acha, também, exagerada a quantia alegada pelo querelante. Esta
testemunha de nome Adriano Moraes Costa entra em contradição no seu depoimento,
ao dizer que ainda tem grande parte da lenha furtada no local. Ou a lenha foi
roubada, ou a lenha esta no local, e sendo uma boa parte da que ali estava, a
roubada, como diz o senhor, jamais o furto seria de 30 toneladas, o equivalente
a 30.000Kg de lenha.
Também esta testemunha, parece ter uma
missa encomendada, porque ela fala que o queixoso fora se entender com o
Administrador de Manhiça e que este lhe teria dito que nada poderia fazer.
Observe-se que neste particular ele não presenciou nada, soube do fato, não se
sabe por quem, pois ele diz. “[...] que lhe constou que o queixoso se fora
entender com o administrador da Manhiça a respeito do furto da lenha,
dizendo-se que o mesmo respondera que fizesse a sua reclamação porque por si
nada lhe podia fazer”
As outras duas testemunhas, as mulheres,
nada acrescentam, pois nada viram, souberam por ouvir dizer.
Sabendo-se que havia a lenha no
acampamento, como disseram as duas testemunhas do sexo masculino, como podiam
eles afirmar que a lenha, se é que viram mesmo os indígenas carregando, era a
do Sr. Ignacio e não a que lhes fora fornecida pelo governo? Qual a garantia
que a lenha que eles viram os indígenas carregando eram do Sr. Igancio? Por
outro lado, sabendo-se que o Sr. Ignacio tinha vigias no local, o que por ele
dito na sua queixa, que não fizeram nada porque tiveram medo; como se explica
que um senhor,(2ª. Testemunha), que residia em local próximo de onde se fazia a
armazenagem da madeira, que por acaso, era em frente mesmo ao local onde o
querelante morava, não sabia deste detalhe: “[...] Quanto a lenha estar
devidamente guardada nada sabe a tal respeito”.
Pelas contradições do depoimento, ele não
poderia ser levado a efeito para fundamentar uma decisão, que constatasse o
furto das 30 toneladas de madeira.
Bom o certo é que, mesmo com depoimentos
tão frágeis, que contrariavam, inclusive, as informações do administrador de
Manhiça, a autoridade que deveria ser respeitada, porque acompanhou os seus indígenas,
e não foi procurado por qualquer pessoa para reclamar nada, foi ordenada a
entrega dos 30.000kg de madeira, entrega que foi feita aos 26 dias do mês de
novembro de 1907.
Efetivamente, foi uma “real” indenização,
digna da visita de Sua Alteza.
Obs: Todas as informações aqui contidas podem ser encontradas no
Arquivo Histórico de Moçambique - Fundo da Direcção dos Serviços dos Negócios
Indígenas, Caixa 1630- Anno 1909.
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