terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Um pouco de historiografia africana


Santos Rufino,Vol.10,p.20
Os estudos sobre a África e africanos vem se modificando através dos tempos, e é este caminho que foi trilhado pela historiografia é que tentaremos demonstrar, neste breve relato, como esta historiografia percebia os indígenas e como se estabeleceu a uma linearidade do ponto de vista ideológico, que enfatiza a superioridade do europeu face aos africanos.
Partindo, portanto, do entendimento de Hegel e Kant, que não distinguiam o “homem silvestre” dos grandes macacos, o que gerava a sua incapacidade de sociabilização e de construção de uma história, faremos este breve resumo da historiografia africana, para clarificar atitudes e medidas que foram, ao longo do tempo, sendo tomadas em relação aos homens que não tinham história, os “selvagens” indígenas.[1]
Tentaremos mostrar como a África e os africanos eram vistos pelo olhar do “OUTRO”, que construiu uma imagem deles, sem que eles, os mais interessados,  participassem de tal construção, e que serviu para justificar as medidas legais tomadas e aplicadas nas colônias.
É um mundo criado pelo exterior, um mundo que, ao contrário do que Vico[2] observou em relação aos homens fazerem a sua própria história, deixou de fora os protagonistas da história criada por tantos quantos tinham interesse na África e precisavam usar os seus nativos para alcançar os seus desideratos, portanto não queriam tirá-los desta condição de “não ser”, que lhes foi imposta.
Um mundo em que o homem branco era o sinônimo da educação, da civilização, do correto, do limpo, do legitimado culturalmente para se sobrepor àqueles que, não brancos, eram considerados inferiores; um mundo legitimado pelas teses darwinianas sobre a seleção natural. O mundo dos valores liberais e humanitários, mas que, contrariamente a estes valores, a cada dia aumentava a distância do “branco” do “de cor”.
A África tida como um continente “povoado por populações que não possuíam a menor noção do poder político e ainda menos do Estado,” [3] o que foi devidamente desmistificado por Evans Pritchard e Meyer Fortes, que demonstram a existência de sistemas políticos africanos. E, ainda que estes autores não tivessem desmistificado tal crença, a própria história se encarregaria de fazê-lo, porque a procura das chefias para estabelecimento de acordos, de termos de vassalagens, etc., é uma demonstração nítida de que havia uma organização política onde existia uma hierarquia, com um poder central que comandava e tomava as decisões.
Todavia, esta mesma África que era povoada por homens de cor que não possuíam alma, portanto, não poderiam ser considerados como gente, precisava ser conhecida, e em todo o mundo instituições surgiram com a finalidade de estudá-la. Em Portugal a Sociedade de Geografia de Lisboa (1875) liderava as iniciativas, e, durante muito tempo, influenciou em muitas das decisões políticas sobre a maneira de governar as colônias e na divulgação da imagem dos africanos como selvagens, preguiçosos, que somente através do trabalho poderiam chegar à civilização.
Santos Rufino, Vol.10, p. 16
Sem dúvida nenhuma que a teoria de Darwin balizou, durante muito tempo, as políticas utilizadas para com os africanos, que teve em Portugal um grande defensor, Oliveira Martins. Justificava-se, através desta teoria, a superioridade do homem branco em relação aos seus congêneres africanos. Os estudos antropológicos de Brocca, a medição do crânio, a forma dele, tudo contribuía para a classificação do ser humano inferior, incapaz, para alguns, de serem educados, homens que não tinham história, porque não conheciam a escrita. No particular destes estudos antropológicos sobre a inferioridade derivada do tamanho e aspecto do crânio, observaremos, no decorrer do trabalho, mui particularmente no Capítulo 1, a influência deste pensamento na caracterização do criminoso nato.   
Entretanto, estes homens brutos, selvagens, sem história, poderiam servir para realizar trabalhos pesados e sem ônus para os utilizadores e, durante muito tempo, estes subprodutos da humanidade foram explorados, espoliados de suas terras, afastados de seus familiares, servindo de burros de cargas e justificando a sua própria existência como seres inferiores.
A Conferência de Berlim obriga que a argumentação histórica e a ideologia dos colonizadores seja modificada, agora estamos diante de um princípio internacional que é o da missão civilizadora, há que se trazer os indígenas à civilização, portanto, eles não podem mais ser tratados como incapazes de viver socialmente e de aprender, embora a literatura colonial portuguesa, mesmo após a convenção de Berlim, continue centrada na “selvageria” dos indígenas, na sua falta de aptidão, o que se reflete na própria política colonial, que procura minimizar a crítica internacional com medidas que em nada modificaram o status dos indígenas, que assim foram considerados em 1894 para efeitos de prestação de serviços, situação que perdurou até o momento em que os indígenas ganharam um estatuto próprio, que garantia a exclusão legal de todos os direitos concedidos aos cidadãos portugueses, e direito a uma justiça mais de que especializada, a justiça “indígena” protagonizada pelos tribunais privativos dos indígenas, criados pelo “OUTRO”; aquele que recebeu e constitucionalizou a missão de civilizar, de trazer os selvagens ao mundo da civilização[4].
Mas os selvagens têm reações, e estas reações fazem aparecer questionamentos sobre as estruturas de resistência (“quilombos e mocambos”) e a historiografia passa a se preocupar com este novo objeto,[5] o negro como escravo e a conseqüência da escravidão para a própria sociedade africana. No estágio atual a preocupação volta-se para a África e africanos, mas a história passa a ter a participação ativa deles; estuda-se a identidade, a etnicidade, os costumes. O pluralismo jurídico vem sendo objeto de vários estudos acadêmicos, mesmo que a história colonial oficial portuguesa, no caso da África lusófona, ainda se mantenha; seja como ponto de partida, seja como justificadora de mudanças estruturais nas sociedades colonizadas, no entanto, a releitura de documentos, os trabalhos de campo com diversas etnias, o estudo dos usos e costumes é feito abstraindo-se dela os mitos, as continuidades, procurando salientar a participação daqueles que, outrora, foram os excluídos da história; esta dinâmica na historiografia africana pode ser sentida a partir da década de 60 e continua passando por transformações.
 Para a historiografia (portuguesa) dita colonial, a história da África somente começa com o desembarque dos europeus naquele continente, o que significa que esta historiografia é limitada territorialmente, por um grande período, ao litoral, e se resume aos relatórios apresentados por estes marinheiros. Somente no século XIX é que a ocupação passa efetivamente a ser feita com mais intensidade e começa uma nova fase na historiografia africana através dos relatos de campanhas militares de ocupação, cheios de ufanismo e heroísmos e apresentando o africano, ainda como selvagem, incapaz, e por isso mesmo, um indivíduo que precisa de tutela.
Na década de setenta os próprios africanos e afro-descendentes é que são os grandes historiadores da África. Novas técnicas e novos métodos de investigação são utilizados, a história oral ganha força, a arqueologia com as suas descobertas auxiliam tais historiadores a reconstruir a história e nomes como Ki-Zerbo, A. Ajauy, B. Ogot, T. Obenga, Tamsir Niane[6], Cheick Anta Diop mesmo com uma tendência afro-centrista,[7] sedimentaram a historiografia africana. A história africana é, pois, através deles, revisada. Agora é o africano que diz a sua história. A diversidade africana é explorada em estudos antropológicos, étnicos, sociológicos, há uma preocupação com a identidade, com a cultura. Aparecem os romances históricos, nele são trazidos os mitos, as lendas, os fatos históricos e as suas explicações, como é o caso de Ualalapi em que Khosa, através da linguagem literária, conta a estória do Gungunhana, que, em um só momento, desfaz um mito tanto português quanto moçambicano. Dona Theodora e os seus Mozungos de Maria Sorensen, que reconstitui o universo dos prazos da Zambézia. Outros autores, como Mia Couto, também trazem a história através dos seus romances. As atuais perspectivas do estudo histórico do continente pretendem tornar conhecido o passado da África tal como é visto pelos africanos.
Santos Rufino, Vol.10, p. 23
Há uma diversificação dos objetos de estudo: estuda-se questões de gênero, de trabalho, saúde, experiências rurais; a década de noventa é, neste particular, promissora. Americanos, ingleses, franceses, trabalham as questões identitárias, a multiculturalidade é matéria obrigatória nestes estudos, que ultrapassam o simples plano do racismo de cor, para questionar outros tipos de discriminação: Apphia, Taylor, Pter Fry, Frantz Fanon, Amy Guttman, Edward Said são exemplos de filósofos modernos que se especializaram nas questões étnicas[8]. Muitos centros de estudos africanos são criados em todo o mundo, pesquisadores de diversas nacionalidades interessam-se pela África.
No final século XX a historiografia africana ganha a África Negra História e Civilizações de Elikia M`Bokolo,[9] traduzido em 2003 para o português.
          A história da escravidão ganha outros contornos, muitas publicações e novas perspectivas em relação a esta, que agora passa da escravidão propriamente dita, aquela da venda de pessoas e do tráfico de escravos, para o trabalho forçado, seja dos serviçais, seja em história mais recente, de mulheres e crianças. Em relação ao direito africano, particularmente em Moçambique, inúmeros são os estudos das instituições e do pluralismo jurídico. Uma grande atenção é dada ao papel das autoridades tradicionais, como intermediadores entre o Estado e a coletividade. A África abre-se em leque para ser objeto dos diversos saberes. A ilustre desconhecida entra, de uma vez, no mundo do conhecimento pela porta da frente, onde deveria ter sido sempre recepcionada.         




[1] “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.” (KANT, 1993: 75-76) Hegel, por sua vez, diz: “a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma idéia geral de sua essência [...] O negro representa, como já foi dito o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a idéia do caráter humano [...] A carência de valor dos homens chega a ser inacreditável. A tirania não é considerada uma injustiça, e comer carne humana é considerado algo comum e permitido [...] Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato inexistentes”. (HEGEL, 1999: 83-86).
[2] Citado por Edward W. Said em o Orientalismo Representações Ocidentais do Oriente.( 2004: 5)
[3] HENRIQUES. I.C. (2004:16) . O professor  Doutor  Gilles Cistac em História do Direito Processual Administrativo  Contencioso em Moçambique cita Junot para esclarecer que existia uma organização em que os poderes estavam concentrados na pessoa do chefe: “ [...] mas o que permanece como factor comum e transversal dessas organizações é a fusão dos  poderes e das funções jurisdicionais e executivas ou administrtivas; como escreve Henri Junot: “Não ha separação de poderes na corte tsonga. O chefe, ajudado pelos conselheiros, conserva em suas mãos o poder legislativo, o poder executivo e o poder judicial. É a autoridade suprema e das suas decisões não há apelo”.  p. 8 .
[4] Isabel Castro Henriques,(2000:219) afirma que “Não parece ser possível proceder a uma simplificação da «ideia colonial»,na medida em que está ancorada na história nacional portuguesa, embora não possa deixar de conhecer mudanças impostas pela evolução do quadro nacional, seja pelas relações internacionais. O regime instaurado em 1926 não deve divergir profundamente da ideologia colonial praticada tanto pela Monarquia parlamentar como pela República.
Convém naturalmente dar conta dos diferentes níveis ideológicos que são solicitados e determinam os comportamentos da administração colonial, tal como estão presentes nas escolhas dos colonos. De facto,  no primeiro nível funciona, a partir da segunda metade do século XIX, a legitmidade histórica portuguesa. A famosa ideologia dos «cinco séculos de colonização» e por consequência de direitos transita para o quadro ideológico do colonialismo revisto pela ditadura. Esta tese é reforçada pelo princípio da existência de uma continuidade transcontinental entre diferentes territórios portugueses: do Minho ao Timor, tal é a fórmula mágica deste colonialismo que a cartografia elaborada na época permite por em evidência, acompanhada pelo famoso slogan, «Portugal não é um país pequeno» [...]”.
[5] Elikia  M´Bokolo(2003: 342) informa que o “tema privilegiado dos estudos consagrados aos africanos no Novo Mundo, a resistência dos negros ao sistema esclavagista liga-se a outra abordagem da história, uma história a partir de baixo, ao nível das violências sofridas e das lutas levadas a cabo pelos dominados”.
[6] Estes autores, sob a direção do primeiro, escrevem, sob os auspicious da Unesco,  a História da África em oito volumes.
[7] PANTOJA. S. In www.igualdaderacial.unb.br [acesso em outubro de 2011].
[8] Apphia A casa de Meu Pai,(1992) The Ethics of Identity (2005) Amy Guttman e Apphia Colour Conscious(1996), Frederick Cooper, Thomas Holt e Rebecca J. Scott – Além da Escravidão (1947) Frederick Cooper- Decolonization and African Society  (1947);  Peter Fry- A persistência da Raça(2005), Frantz Fanon, Pele Negra Máscaras Brancas(1975). Edward W Said Orientalismo (2004); Charles Taylor, Multiculturalismo. (1994)
[9]  M´BOKOLO, E. (2003). 

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