quinta-feira, 9 de maio de 2013

Uma indenização "real", ou um "real" favorecimento?

Aconteceu em 1907. 
Durante os meses de julho a setembro daquele ano, Sua Alteza, o Príncipe Real, Dom Luis Felipe, foi visitar a África. Aliás, até então, o primeiro monarca a fazer uma visita ao Ultramar Português, embora a visita não tivesse se limitado às colônias portuguesas.
A visita do Príncipe, um real acontecimento, tinha de ser comemorada e as colônias deveriam estar preparadas para o evento, isto se aplicava tanto aos brancos aos brancos quantos aos da terra, os segundos sob a supervisão dos primeiros, evidentemente.
O que fazer para agradar ao Príncipe? Tudo. E o que seria tudo? Mostrar minimamente a realidade, ainda que devidamente camuflada, porquanto, ele deveria sair dali impressionado, com tudo, inclusive com o tratamento que era dado aos “indígenas”. Para organizar e observar os mínimos detalhes, como sempre, organizou-se uma Comissão, que foi denominada de “Comissão de Festejos”, que ficou responsável por tudo o que fosse ligado à visita real.
Visita Príncipe em 1907
Em 1907 o Ministro e Secretario do Estado e Negócios da Marinha e Ultramar era Ayres de Ornellas, que, inclusive, acompanhou o Príncipe nesta jornada. O Governador Geral de Moçambique era A. Freire de Andrade. A capital, da província, de fato e de direito, era Lourenço Marques, status que foi alcançado através do Decreto de 23 de maio de 1907, exatamente pelo estatuto que modificava a administração nas províncias ultramarinas da lavra do então Ministro Ornellas.  Lourenço Marques, à época já ostentava a sua  imponente estação dos Caminhos de Ferro, ali  existente desde 1895, como convinha a uma grande colônia, como era a de Moçambique e grandes obras estavam a realizar-se.
As obras que podiam ser visitadas pelo Príncipe, não precisavam de preparo, estavam às vistas e seriam
         Príncipe visitando
Lourenço Marques 
, como foram, visitadas por sua Alteza Real, afinal o Príncipe tinha de ver o que os administradores estavam fazendo, e nada melhor, que visitar os canteiros das obras em andamento.
Entretanto, para que os naturais da terra fossem apresentados ao Príncipe, era necessária, sem dúvida, uma preparação. Por que a preparação? Porque tudo preciíava ter um aspecto bem natural. E o que seria tão natural aos indígenas que poderia impressionar o Príncipe, a Sua Alteza Real? Um batuque, claro! Num batuque o Príncipe poderia ter a dimensão da selvageria, do diverso modo de vida dos nativos, e, mais importante ainda, do controle que os administradores detinham sobre os indígenas
Assim, a comissão dos festejos organizou o batuque. Foram solicitados indígenas das diversas circunscrições para dele participarem. Os indígenas sairiam de suas circunscrições, ou melhor dos seus confinamentos, para irem até Lourenço Marques. Para tanto os secretários das diversas circunscrições vieram antes para a capital, escolheram os locais dos acampamentos, providenciaram mantimentos, madeira, etc., enfim tudo o que necessário para o “bem estar”dos indígenas, que deveriam ficar em Lourenço Marques do meio dia de 27 de julho até o dia 31 do mesmo mês, portanto, 4 dias não completos.
Os administradores das respectivas circunscrições tinham de ficar responsáveis e atentos em relação aos seus indígenas, a responsabilidade por qualquer transtorno que viesse a acontecer seria a si atribuídas. Um erro, um acontecimento indesejado, um mau comportamento dos indígenas resultava, com certeza, em pontos perdidos em uma promoção.
Bom, o fato é que os indígenas da 2ª Circunscrição de Lourenço Marques ( Manhiça) ficaram acampados nas antigas obras do porto. Estavam vigiados, diuturnamente, pelo administrador e empregados da referida circunscrição, de acordo com informações do próprio administrador: “permanecendo eu e os empregados da Circumscripção junto aos pretos”.
Os indígenas da Circunscrição de Magude ficaram acampados em um terreno do Alto Mohé, também de 27 de julho até o dia 31 do mesmo mês.
Batuque feito, Príncipe homenageado, hora de ir embora: Príncie para continuar a sua visita real às terras ultramarinas, e os indígenas para retornarem ao confinamento nas suas circunscrições.
Eis que, no dia 5 de agosto, a firma comercial Correa & Martins, solicita à Comissão de Festejos uma indenização correspondente ao valor de 14 bois, que, segundo os seus proprietários, foram roubados pelos pretos de Manhiça, durante a visita do Príncipe. Explicaram que receberam 384 bois vivos, que foram desembarcados pelo navio Prudence e que ditos pretos “mataram e levaram em bocados, 14 d´esses bois”, alegam que “os suppes" ou seus serviçaes não tinham força para oppor a uma avalancha de pretos que de azagaia em punho, atacavam os animais”.
Detalhe estação ferroviári
Maputo
A Comissão dos festejos, ao receber a solicitação dos suplicantes, diz: “ A reclamação a que se refere este requerimento, consta do outro requerimento que aqui vai junto. A comissão dos festejos, como se vê, nada tem com os desmandos dos indígenas, se é que elles são verdadeiros, o que não posso averiguar.”
Uma outro requerimento chega à Secretaria do Negócios e Serviços Indígenas, este, por sua vez, do Sr. João Gomes Jardim, pedindo indenização pelos prejuízos causados por um grupo de indígenas de Magude, que acamparam no seu terreno sito no Alto Mohé, porque este lhe quebraram 4 estacas que prendiam 4 ordens de arame lisos, e subtraíram estes, correspondente a três rodas grandes. Explica que os arames serviam de vedação para o seu terreno que confronta com os terrenos de Freire de Andrade e de Clemente Nunes.
Tal requerimento também é enviado ao Secretario de Negócios e Serviços Indígenas, que dá o mesmo despacho, aconselhando que o requerente ajuíze a ação correspondente no tribunal competente, isto em 04 de setembro, após receber a informação do Administrador, que assegura que não recebeu qualquer queixa do proprietário do terreno onde os indígenas estiveram acampados, e que presenciou o embarque dos indígenas na estação dos caminhos de ferro, não vendo qualquer deles carregando arame na bagagem.
Placa na estãção de comboio
Maputo
Como não há na Caixa em que estão estes documentos tais queixas contra os indígenas, presume-se que os requerentes não levaram avante as suas reclamações, isto é, não ajuizaram ações para pedir a indenização.
Todavia, houve um pedido que foi atendido. Uma indenização que foi totalmente paga, por sinal, dentre as apresentadas, a de mais difícil, aceitação:
O Requerimento é de um senhor de nome Luciano Ignacio Feliz, negociante e proprietário em Lourenço Marques e ele reclama um prejuízo que sofreu, diz ele:
“[...] Que é negociante tambem em lenha e é fornecedor, por contracto d´alguns estabelecimentos publicos, e para poder cumprir os fornecimentos que ainda lhe são feitos é obrigado a ter na praia, como tem, defronte de sua casa, grande quantidade de lenha.
Succedeu porém que, agora, com a vinda à Cidade dos pretos para a recepção de Sua Alteza, o Princípe Real, os da circumnscripção da Manhiça estavam acampados junctamente nas Obras do Porto, e por qualquer circunstancia, o Almoxarifado não lhes forneceu a horas precisas que elles entendiam, a lenha para cosinhar e para se aquecerem durante a noite, assaltaram ao montão da lenha que o reclamante tinha na praia, roubando para cima de 30 tonelladas, sem que o reclamante e os proprios empregados que os superentendia, podessem obstal-o ou evitar.
Reclama pois contra esse desbaste, pedindo o pagamento de 30 tonelladas de lenha á razão de 5.000 réis, preço porque, por contracto, a fornece aos estabelecimentos do comercio
O Reclamante, para provar o que diz, dá como testemunha o proprio Administrador da Circumnscripção, o Sr. Tenente Corvo, que teve conhecimento do caso, sem, como disse, poder obtalos, podendo ainda ter muitas outras testemunhas, se for necessario.
Digne-se pois V.Exª ordenar à repartição da fazenda para que lhe liquide pague a quantia de 150$000 réis, equivalente a 30 tonelladas de lenha, por ser de Justiça.

Pede Deferimento.”
O administrador foi solicitado a dar informações e diz que não teve conhecimento do fato e que, durante todo o tempo em que os indígenas estiveram no acampamento ele ali esteve com outro funcionários, que providenciavam tudo o quanto os indígenas solicitassem, inclusive madeira, e que quando deixaram o acampamento, as madeiras que estavam na praia lá ficaram, acrescentando que acha demasiado exagerado, caso o fato tenha se dado, a quantidade 30 toneladas, até porque, segundo ele, a falta de tamanha quantidade dava logo nas vistas e seria de imediato reclamada, o que não aconteceu, inclusive porque o proprietário da madeira mora em frente a praia onde estava armazenada a madeira.
Foi feita uma investigação presidida pelo administrador do Conselho de Lourenço Marques –Sr. Antonio Luiz dos Remédios de Fonseca.
A primeira testemunha era uma mulher de nome Marianna Paredes, uma viúva, doméstica, portuguesa, que residia na estrada marginal das obras do Porto. Diz a senhora que foi ver o batuque em honra a sua Alteza e que “[...] quando voltava viu passar o Sr. Luciano Ignacio num ricshow a berrar pelos pretos, que tendo chegado primeiro do batuque, passaram pelo local onde o mesmo tinha empilhada a llenha, agarraram e levaram tanto quanto podiam, embora ela nao soubesse precisar a quantidade”. Disse também que sabia que o sr. Luciano tinha uns pretos tomando conta da madeira, mas que com medo, deixaram que o furto fosse praticado.
A segunda testemunha , também português e do Lamego, casado e morador da estrada marginal das Obras do Porto disse que:
“Achando-se na varanda da sua residencia, viram passar os pretos que se recolhiam do batuque em honra a Sua Alteza o Principe Real, levando, uma grande parte d´elles alguma lenha cuja quantidade não pode calcular, e só mais tarde é que soube, por ouvir dizer, que a referida lenha tinha sido furtada pelos mesmos indigenas das pilhas que Luciano Ignacio Felix tinha na praia em frene da sua casa, acrescentando que os referidos indigenas nenhuma necessidade tinham d´isso porque vira as carroças do almoxarifado acarretando lenha para o local do alojamento dos mesmos.[...]”.
O terceiro testigo é uma mulher, também portuguesa de Lisboa e moradora na estrada marginal das Obras do Porto. Tal testemunha diz que nada viu do acontecido e só sabe por ouvir dizer, que os indigenas de Manhiça haviam furtado a lenha.
A quarta testemunha, também português e, no momento, desempregado, diz:
“[...] que na tarde do batuque vira os pretos que vinham do mesmo, passarem na maior parte pela estrada e alguns d`elles passaram pelo lado da praia e junto das pilhas de lenha que Luciano Ignacio Felix tem no mesmo local e das quaes, alguns indigenas, tiraram alguns paus, dirigindo-se para o seu acampamento e que, logo a traz dos mesmos indigenas, vinha o queixoso, que, começando a berrar, fizera com que alguns dos indigenas voltassem atras a largar a lenha na pilha e outros a largal-a pelo caminho, e ainda outros largaram a correr para o acampamento com a lenha que levava, o que a seu ver fizeram sem necessidade, pois que tinham lá muita lenha e tanto assim que lá a deixaram quando se foram embora. Finalmente quanto á quantidade de lenha que o queixoso diz terem-lhe furtado, parece-lhe ser exagerada, conquanto não possa calcular bem a porção dela [...].”
Não há na cx. 1630 a decisão, ou melhor a fundamentação dela, mas o Secretario dos Negocios Indigenas manda que o Almoxarifado da Fazenda entregue “[...] ao Sr. Luciano Feliz 30 toneladas de madeira, visto lhe terem os pretos que aqui vieram ao batuque em honra a Sua Alteza o Principe Real, tirado egual quantia de lenha que elle tinha nas obras do porto”.
A decisão do Sr. Secretario de Negócios Indígenas foi, no mínimo, equivocada: Se analisarmos os depoimentos das testemunhas, temos a fragilidade da prova em relação ao furto de 30 toneladas de madeira.
Das quatro testemunhas, todas elas portuguesas, ou seja, brancos tal qual o proprietário da madeira, só uma delas viu alguns indígenas com madeira, ainda assim, segunda esta testemunha, de nome José de Sá Pessoa, os indígenas que pegaram a madeira, na sua grande maioria, quando ouviram os berros do Sr. Feliz, largaram-na, muito poucos é que correram para o acampamento, acrescentando que a quantidade solicitada pelo queixoso era exagerada.
Uma outra testemunha disse ter visto da sua varanda alguns indígenas carregando madeira, mas não pode calcular a quantidade e acha, também, exagerada a quantia alegada pelo querelante. Esta testemunha de nome Adriano Moraes Costa entra em contradição no seu depoimento, ao dizer que ainda tem grande parte da lenha furtada no local. Ou a lenha foi roubada, ou a lenha esta no local, e sendo uma boa parte da que ali estava, a roubada, como diz o senhor, jamais o furto seria de 30 toneladas, o equivalente a 30.000Kg de lenha.
Também esta testemunha, parece ter uma missa encomendada, porque ela fala que o queixoso fora se entender com o Administrador de Manhiça e que este lhe teria dito que nada poderia fazer. Observe-se que neste particular ele não presenciou nada, soube do fato, não se sabe por quem, pois ele diz. “[...] que lhe constou que o queixoso se fora entender com o administrador da Manhiça a respeito do furto da lenha, dizendo-se que o mesmo respondera que fizesse a sua reclamação porque por si nada lhe podia fazer”
As outras duas testemunhas, as mulheres, nada acrescentam, pois nada viram, souberam por ouvir dizer.
Sabendo-se que havia a lenha no acampamento, como disseram as duas testemunhas do sexo masculino, como podiam eles afirmar que a lenha, se é que viram mesmo os indígenas carregando, era a do Sr. Ignacio e não a que lhes fora fornecida pelo governo? Qual a garantia que a lenha que eles viram os indígenas carregando eram do Sr. Igancio? Por outro lado, sabendo-se que o Sr. Ignacio tinha vigias no local, o que por ele dito na sua queixa, que não fizeram nada porque tiveram medo; como se explica que um senhor,(2ª. Testemunha), que residia em local próximo de onde se fazia a armazenagem da madeira, que por acaso, era em frente mesmo ao local onde o querelante morava, não sabia deste detalhe: “[...] Quanto a lenha estar devidamente guardada nada sabe a tal respeito”.
Pelas contradições do depoimento, ele não poderia ser levado a efeito para fundamentar uma decisão, que constatasse o furto das 30 toneladas de madeira.
Bom o certo é que, mesmo com depoimentos tão frágeis, que contrariavam, inclusive, as informações do administrador de Manhiça, a autoridade que deveria ser respeitada, porque acompanhou os seus indígenas, e não foi procurado por qualquer pessoa para reclamar nada, foi ordenada a entrega dos 30.000kg de madeira, entrega que foi feita aos 26 dias do mês de novembro de 1907.
Efetivamente, foi uma “real” indenização, digna da visita de Sua Alteza.


Obs: Todas as informações aqui contidas podem ser encontradas no  Arquivo Histórico de Moçambique - Fundo da Direcção dos Serviços dos Negócios Indígenas, Caixa 1630- Anno 1909.



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